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“Costumava trazer gelo para Nina Simone. Ela era sempre legal comigo. Costumava me chamar de “queriido”. Costumava trazer-lhe uma grande caixa cinza de plástico cheia de gelo para esfriar seu scotch.
Ela despia a peruca loira e a atirava no chão. Embaixo, seu cabelo real era curto como o de um cordeiro preto tosado. Tirava as pestanas e as grudava no espelho. As pestanas eram grossas e pintadas de azul. Sempre me lembrava daquelas rainhas egípcias que vi na 'National Geographic'. Sua pele era brilhosa e úmida. Enrolava uma toalha azul ao redor do pescoço, então se inclinava pra frente, descansando os cotovelos nos joelhos. O suor escorria do seu rosto e pingava no piso de concreto vermelho, entre seus pés.
Costumava terminar seu show com a música “Jenny, a pirata”, de Bertold Brecht. Sempre cantava aquela música com uma profunda e penetrante violência, como se ela própria tivesse escrito a letra. Sua performance batia direto na garganta da plateia branca. Então, ela mirava na cabeça. Era mortal naqueles dias.
A música que ela cantava que realmente me matava era “You’d be nice to come home to”. Sempre congelava meus passos. Estava na plateia, juntando copos de whiskey sour e ela começava aquele retumbante piano de cauda com sua voz fantasmagórica serpenteando entre as cordas acumuladas. Meus olhos se levantavam para o palco e ficavam lá, enquanto minhas mãos continuavam trabalhando.
Uma vez, derrubei uma vela enquanto ela cantava esta música. A cera quente derramou toda sobre o traje de um executivo. Fui chamado ao escritório do gerente. O executivo estava lá, com a cera endurecida derramada nas calças. Parece que veio por conta própria. Fui despedido naquela noite.
Da rua, ainda podia ouvir sua voz vinda direto das paredes de concreto: “You’d be paradise to come home to”.

28/9/80
San Francisco, California.

Do incrível Crônicas de Motel (1982), de Sam Shepard. Tenhamos todos um ótimo final de semana.

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