Gil Scott-Heron, que terá disco novo lançado em fevereiro
A notícia é muito boa: Gil Scott-Heron está de volta. Mestre absoluto, barítono profundo, lírico das ruas, o homem tem feito shows e gravou um álbum, I'm new here, que chega às lojas da Inglaterra e dos EUA nos primeiros dias de fevereiro (8 e 9, respectivamente). Aos 60 anos de idade, Scott-Heron, vocês sabem, é desses gênios da música e da literatura de alma atormentadíssima. Tormentos esses que ele tentou, em vão, aplacar com a velha autodestruição. Por isso, vê-lo mais uma vez na lida criativa é testemunhar com alegria os passos de um sobrevivente. Um artista incrível que traz boas novas do inferno. Não por acaso, o single que inicia os trabalhos de I'm new here é "Me and the devil" (é, o tinhoso por perto), versão apropriada para a composição do inigualável Robert Johnson.
Falando no mestre, lembrei que quando eu soube que a editora Conrad lançaria o livro Abutre no Brasil, propus uma matéria para a Folha de S.Paulo. Em meio aos preparativos para o escrito, cheguei à péssima informação de que Scott-Heron, desde sempre um dos meus heróis, estava preso. Enlouquecido. Fiquei desolado. Era como se o argumento soturno do romance se repetisse com o autor. Uma tristeza. O batuque foi publicado em alto de página da Ilustrada no dia 30 de março de 2002 . Tá aqui e aí embaixo.
"Abutre" continua a rondar o cantor Gil Scott-Heron
RODRIGO CARNEIRO
free-lance para a Folha
Em 1975, o cantor, poeta, ficcionista, pianista e compositor norte-americano Gil Scott-Heron, 52, disse ao jornal "Village Voice": "Nunca houve falta de inquietação na comunidade negra, só falta de direção". Passadas quase três décadas, a declaração do autor do romance "Abutre" (que chega agora ao Brasil) não só se confirma, mas apresenta contornos de ironia trágica.
Desde novembro Scott-Heron está preso, e permanecerá assim pelos próximos três anos. A decisão da Suprema Corte de Nova York foi o ápice dos desacertos químicos do artista. Recentemente, policiais o flagraram portando cocaína e crack.
Inicialmente, ficou decidido que ele participaria de um longo programa de reabilitação. Por não considerar a própria dependência, ele apelou da decisão, e um novo julgamento foi marcado. Dessa vez, Scott-Heron não se apresentou à corte. Quatro semanas depois, foi preso novamente, no Harlem, e sentenciado. "Você teve todas as oportunidades para se ajudar, mas nunca mostrou interesse", disse a juíza.
No site da editora escocesa Payback Press (especializada em literatura afro-americana e detentora dos direitos de publicação dos escritos de Scott-Heron), www. canongate.com/payback, o editor e amigo Jamie Byng desabafa: "Ele não é criminoso, e sim uma vítima de lunáticas e hipócritas leis que aumentam o dano que as drogas causam à sociedade".
No entanto, a obra combativa e íntegra do artista é maior do que seu inferno pessoal. Nascido em Chicago, em 49, filho de uma acadêmica de biblioteconomia e de um jogador de futebol de origem jamaicana, teve a dimensão do preconceito racial ainda na primeira infância -era uma das três únicas crianças negras na escola. Com o divórcio dos pais, foi morar no Tennessee com a avó, por quem foi iniciado em blues e jazz.
Aos 13, foi viver com a mãe em Nova York, no bairro negro do Bronx. Na escola particular, estudou a produção literária dos autores brancos. E nas ruas e bibliotecas públicas, seguiu os passos dos expoentes do chamado Harlem Renaissance (período de grande efervescência da literatura afro-americana, no entre-guerras).
Sempre influenciado pelo poeta negro Langston Hughes, lançou em 70 seu primeiro romance, "Abutre". Meses depois, acompanhado por percussionistas, gravou alguns de seus poemas no disco "A New Black Poet: Small Talk at 125th & Lenox". No álbum estão os fundamentos do que mais tarde seria conhecido como rhythm and poetry, o rap.
Aos 21 anos, Scott-Heron sabia que os paradigmas da comunidade negra dos anos 60 "viveram rápido e morreram jovens", para usar um slogan da época.
O ideário paz e amor já não significava mais nada. Adversários políticos, Martin Luther King e Malcolm X foram igualmente assassinados. A milícia dos Black Panthers começava a ter as estruturas abaladas pela ofensiva do FBI. E a cultura das drogas assumia tons bastante sombrios.
"Abutre" é o retrato desse vazio ideológico. Tendo por ponto de partida a morte de um traficante, faz uma alegoria sem maniqueísmo do dilema do jovem negro metropolitano.
Seu segundo e último romance chamou-se "The Nigger Factory" (72). Um ano antes, chegara às lojas o segundo álbum, "Pieces of Man". Dessa vez, a ladainha militante incorporava a linguagem do jazz, do soul e do blues. O canto barítono melancólico e o piano dão o tom aos clássicos "The Revolution Will Not Be Televised" e "Lady Day and John Coltrane".
No encontro com o multiinstrumentista Brian Jackson, na universidade, estabeleceu uma parceria inspirada e duradoura.
O trabalho com Cecil Taylor, produtor de Stevie Wonder, em 78, talvez seja seu momento de maior êxito comercial. A Guerra Fria, a mídia americana, o apartheid sul-africano e o panorama sociopolítico do Terceiro Mundo estavam na mira do letrista.
A década seguinte não seria tão pródiga a partir do final da parceria com Brian Jackson, em 80, e da saída da gravadora Arista, em 85. Nos anos seguintes, sua música sobreviveu por meio dos netos. Rappers sofisticados como KRS-One, A Tribe Called Quest e P.M. Dawn samplearam suas batidas e dizeres até que, em 94, ele ressurgiu em grande estilo, com "Spirits". A faixa "Message to the Messagers" sugeria auto-reflexão à descerebrada geração gangsta.
Em 2001, após um grande hiato pontuado por queixas de agressão pela ex-mulher e excessos variados, Scott-Heron voltou a se apresentar ao vivo. Apesar do semblante cadavérico, aparentava estar renascido e em direção contrária às armadilhas do gueto. Parecia. Hoje, está preso. E, lá em cima, o abutre espreita.
A notícia é muito boa: Gil Scott-Heron está de volta. Mestre absoluto, barítono profundo, lírico das ruas, o homem tem feito shows e gravou um álbum, I'm new here, que chega às lojas da Inglaterra e dos EUA nos primeiros dias de fevereiro (8 e 9, respectivamente). Aos 60 anos de idade, Scott-Heron, vocês sabem, é desses gênios da música e da literatura de alma atormentadíssima. Tormentos esses que ele tentou, em vão, aplacar com a velha autodestruição. Por isso, vê-lo mais uma vez na lida criativa é testemunhar com alegria os passos de um sobrevivente. Um artista incrível que traz boas novas do inferno. Não por acaso, o single que inicia os trabalhos de I'm new here é "Me and the devil" (é, o tinhoso por perto), versão apropriada para a composição do inigualável Robert Johnson.
Falando no mestre, lembrei que quando eu soube que a editora Conrad lançaria o livro Abutre no Brasil, propus uma matéria para a Folha de S.Paulo. Em meio aos preparativos para o escrito, cheguei à péssima informação de que Scott-Heron, desde sempre um dos meus heróis, estava preso. Enlouquecido. Fiquei desolado. Era como se o argumento soturno do romance se repetisse com o autor. Uma tristeza. O batuque foi publicado em alto de página da Ilustrada no dia 30 de março de 2002 . Tá aqui e aí embaixo.
"Abutre" continua a rondar o cantor Gil Scott-Heron
RODRIGO CARNEIRO
free-lance para a Folha
Em 1975, o cantor, poeta, ficcionista, pianista e compositor norte-americano Gil Scott-Heron, 52, disse ao jornal "Village Voice": "Nunca houve falta de inquietação na comunidade negra, só falta de direção". Passadas quase três décadas, a declaração do autor do romance "Abutre" (que chega agora ao Brasil) não só se confirma, mas apresenta contornos de ironia trágica.
Desde novembro Scott-Heron está preso, e permanecerá assim pelos próximos três anos. A decisão da Suprema Corte de Nova York foi o ápice dos desacertos químicos do artista. Recentemente, policiais o flagraram portando cocaína e crack.
Inicialmente, ficou decidido que ele participaria de um longo programa de reabilitação. Por não considerar a própria dependência, ele apelou da decisão, e um novo julgamento foi marcado. Dessa vez, Scott-Heron não se apresentou à corte. Quatro semanas depois, foi preso novamente, no Harlem, e sentenciado. "Você teve todas as oportunidades para se ajudar, mas nunca mostrou interesse", disse a juíza.
No site da editora escocesa Payback Press (especializada em literatura afro-americana e detentora dos direitos de publicação dos escritos de Scott-Heron), www. canongate.com/payback, o editor e amigo Jamie Byng desabafa: "Ele não é criminoso, e sim uma vítima de lunáticas e hipócritas leis que aumentam o dano que as drogas causam à sociedade".
No entanto, a obra combativa e íntegra do artista é maior do que seu inferno pessoal. Nascido em Chicago, em 49, filho de uma acadêmica de biblioteconomia e de um jogador de futebol de origem jamaicana, teve a dimensão do preconceito racial ainda na primeira infância -era uma das três únicas crianças negras na escola. Com o divórcio dos pais, foi morar no Tennessee com a avó, por quem foi iniciado em blues e jazz.
Aos 13, foi viver com a mãe em Nova York, no bairro negro do Bronx. Na escola particular, estudou a produção literária dos autores brancos. E nas ruas e bibliotecas públicas, seguiu os passos dos expoentes do chamado Harlem Renaissance (período de grande efervescência da literatura afro-americana, no entre-guerras).
Sempre influenciado pelo poeta negro Langston Hughes, lançou em 70 seu primeiro romance, "Abutre". Meses depois, acompanhado por percussionistas, gravou alguns de seus poemas no disco "A New Black Poet: Small Talk at 125th & Lenox". No álbum estão os fundamentos do que mais tarde seria conhecido como rhythm and poetry, o rap.
Aos 21 anos, Scott-Heron sabia que os paradigmas da comunidade negra dos anos 60 "viveram rápido e morreram jovens", para usar um slogan da época.
O ideário paz e amor já não significava mais nada. Adversários políticos, Martin Luther King e Malcolm X foram igualmente assassinados. A milícia dos Black Panthers começava a ter as estruturas abaladas pela ofensiva do FBI. E a cultura das drogas assumia tons bastante sombrios.
"Abutre" é o retrato desse vazio ideológico. Tendo por ponto de partida a morte de um traficante, faz uma alegoria sem maniqueísmo do dilema do jovem negro metropolitano.
Seu segundo e último romance chamou-se "The Nigger Factory" (72). Um ano antes, chegara às lojas o segundo álbum, "Pieces of Man". Dessa vez, a ladainha militante incorporava a linguagem do jazz, do soul e do blues. O canto barítono melancólico e o piano dão o tom aos clássicos "The Revolution Will Not Be Televised" e "Lady Day and John Coltrane".
No encontro com o multiinstrumentista Brian Jackson, na universidade, estabeleceu uma parceria inspirada e duradoura.
O trabalho com Cecil Taylor, produtor de Stevie Wonder, em 78, talvez seja seu momento de maior êxito comercial. A Guerra Fria, a mídia americana, o apartheid sul-africano e o panorama sociopolítico do Terceiro Mundo estavam na mira do letrista.
A década seguinte não seria tão pródiga a partir do final da parceria com Brian Jackson, em 80, e da saída da gravadora Arista, em 85. Nos anos seguintes, sua música sobreviveu por meio dos netos. Rappers sofisticados como KRS-One, A Tribe Called Quest e P.M. Dawn samplearam suas batidas e dizeres até que, em 94, ele ressurgiu em grande estilo, com "Spirits". A faixa "Message to the Messagers" sugeria auto-reflexão à descerebrada geração gangsta.
Em 2001, após um grande hiato pontuado por queixas de agressão pela ex-mulher e excessos variados, Scott-Heron voltou a se apresentar ao vivo. Apesar do semblante cadavérico, aparentava estar renascido e em direção contrária às armadilhas do gueto. Parecia. Hoje, está preso. E, lá em cima, o abutre espreita.
Comentários
Parabésn, bom ano,uma produção profícua em 2010, em textos e músicas
bicho....eu queria mt ter acesso aos outros escritos dele. ate agora so achei o abutre,q achei mt bom!!!vc tem noçao d como encontra-los???abraço