Por Rodrigo Carneiro
“Falei para caramba”, observa o escritor e jornalista Edney Silvestre ao final da entrevista. A reportagem de ALFA agradece. Tem material de sobra para traçar o perfil do entrevistado e uma certeza: a narrativa faria bonito em livro. Afinal, o escritor premiado com o Jabuti de Melhor Romance de 2010, por Se eu Fechar os Olhos Agora, repórter da Rede Globo, correspondente internacional da emissora entre 1991 e 2002, apresentador e criador do programa Espaço Aberto Literatura, exibido desde 2003 pela Globo News e morador do bairro carioca do Leblon, depois de anos em Nova York, tem uma trajetória invulgar. “Meu pai era dono de um armazém e minha mãe tinha sido operária em uma fábrica de tecidos. Nós éramos seis filhos. Pobres, mas não destituídos”, diz ele, natural de Valença (RJ). “Tínhamos o essencial, passamos por dificuldades maiores após perdermos tudo num incêndio. Quando nossa casa pegou fogo, eu com uns dois anos e meio de idade, fomos morar “de favor”, em uma casa condenada, que tinha goteiras e onde fazia muito frio. Minha mãe estava grávida. Nessa época tive anemia profunda. Ficava na cama a maior parte do tempo, sem disposição nem saúde para sair e andar.”
A literatura, entretanto, surgiu como alento. Edney não sabe precisar quem lhe deu o primeiro livro, mas lembra que mesmo não sabendo ler, teve as portas do mundo da imaginação escancaradas – possivelmente por uma edição de Os Três Porquinhos. “Meu amor pelos livros vem desse período. Eles me davam a vida que eu não tinha. Tudo o que havia de ensolarado e alegre estava ali, nas páginas, nos textos.”
Curado da anemia, passou a explorar a cidade. Vivia na biblioteca pública, além de frequentar assiduamente os cinemas Glória e Rosário. Nas salas de exibição, aprendeu o inglês que pagaria parte das contas quando foi estudar Ciências Sociais no Rio de Janeiro. Indicado por uma professora, traduziu muito livro de bolso de faroeste. “O inglês exigido para esses livrinhos era simples e direto: ‘Solte a Mary, seu bandido!’, ‘Agora você vai aprender o quanto pesa o braço da lei’, e coisas assim. O que eu aprendera nas sessões dos cinemas em Valença eram mais do que suficientes para isso” diverte-se. Essas traduções, porém, se sofisticariam e ele arrumou emprego na editora Civilização Brasileira. Por conta de uma delas, Fundamentos de Filosofia, de Fiodor Afanasiev, teve problemas com a ditadura militar. Segundo investigações delirantes do DOPS, o jovem tradutor Edney Silvestre era pseudônimo do editor e militante de esquerda Ênio Silveira. Foi preso e interrogado.
A estreia como jornalista deu-se quando Edney foi para a Bloch Editores. Funcionário da Manchete Press, propunha reportagens culturais, que eram aceitas. “Aos 19, 20 anos, recém-chegado do interior, eu achava espetacular aquela circulação de estrelas jornalísticas e literárias pela redação, entre elas Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony “, diz. “Por lá também circulavam vedetes de teatro de revista, Misses Brasil, modelos internacionais célebres e atrizes estupendas como Dina Sfat e Tônia Carrero, duas das mulheres mais bonitas que já vi.”
Tudo ia bem com o jornalismo até um novo problema com o regime. Empregado de O Cruzeiro, viu uma reportagem de sua autoria, sobre a falência de uma fábrica de charutos no recôncavo baiano, previamente censurada. O conteúdo da matéria custou-lhe o emprego e o tornou alvo constante da atenção de militares e censores. “Hoje acredito que nós, os jovens que estavam tentando sacudir a estrutura enferrujada da revista, éramos malvistos e indesejados não apenas pelos espiões da ditadura, mas especialmente pela velha guarda dos Diários Associados”, analisa.
Impedido exercer seu ofício, Edney foi ser redator publicitário e diretor de comerciais. Trabalhou, como ele mesmo diz, nas melhores e nas piores agências do país. Até chegar aos EUA, onde produzia campanhas e videoclipes na KSK Visuals, em Nova York. Para contrapor a fogueira das vaidades da publicidade e do meio musical norte-americanos, escrevia artigos e reportagens para publicações brasileiras. O primeiro frila para O Globo rendeu um convite para colaboração permanente do jornal. “Foi como voltar para casa”, diz ele, que logo depois declinaria de uma oferta milionária para ser diretor de uma produtora de comerciais em Miami. “Era muita grana, mesmo. Não aceitei. Sabia que tinha feito o caminho de volta à minha verdadeira vocação. Fiquei como correspondente de O Globo”.
A migração do impresso para o televisivo aconteceu entre o gradual e o abrupto. Tímido, ele, que criara e apresentara, ao lado do amigo Paulo Francis, o Milênio, na Globo News, relutava em atuar na televisão aberta. Temia pela própria privacidade. Diante de um terceiro convite feito por Evandro Carlos de Andrade, diretor de Jornalismo da emissora, pediu tempo para pensar. O diretor disse que ligaria em cinco minutos. E ligou. Edney aceitou. “Você começa depois de amanhã”, ouviu, trêmulo, do outro lado da linha.
O grande marco de sua carreira como correspondente foi a cobertura dos atentados ao World Trade Center em 2001. Edney e o cinegrafista Orlando Moreira foram os primeiros brasileiros a chegar às torres gêmeas em destroços. “Três mil mortos, em um único ataque, dentro da cidade que era a capital financeira e intelectual do maior império do mundo”, comenta ele, dez anos após o ocorrido. “O horror que presenciei está contado em meu livro Outros Tempos. Ali também conto detalhes do que foram as dificuldades da cobertura jornalística daqueles atentados.”
Sim, os livros, claro, voltam à baila. O debute na ficção, Se eu Fechar os Olhos Agora, inspirado por histórias ouvidas na infância e adolescência, e que levou praticamente duas décadas sendo gestado, venceu em 2010 os Prêmios São Paulo de Literatura, categoria estreante, e Jabuti de Melhor Romance – além de ter programadas traduções em cinco países da Europa. No Jabuti, celeuma: o Prêmio Livro do Ano foi concedido a Leite Derramado, de Chico Buarque, ainda que a obra tenha ficado em segundo lugar na categoria Romance. A lógica da premiação foi questionada na imprensa. Escritores e leitores mais exaltados sugeriram que Chico devolvesse o prêmio e a editora Record, que publica os livros de Edney, anunciou que não mais participará do jogo. “Ter jornais, revistas e sites debatendo literatura em suas primeiras páginas foi sensacional”, afirma. E com Chico, falou depois da polêmica toda?” Não falei com o Chico Buarque nem antes nem depois. Nossos círculos são diferentes, não convivemos, não frequentamos os mesmos lugares”. Então, vê-los juntos no Espaço Aberto Literatura seria ótimo. ”Se ele quiser dar entrevista para o programa, é só ligar: as portas estarão abertas.”, diz Edney, às vésperas da publicação do segundo romance, A Felicidade é Fácil, que se passa durante os anos 1990, em meio ao governo de Fernando Collor de Mello. “Faço um mapeamento da sociedade brasileira daquela época, perversa e corrupta, partindo de um acontecimento real: o sequestro de uma criança, supostamente filha de um milionário, na cidade de São Paulo”, avisa.
Íntegra do texto escrito para edição de setembro último da revista
ALFA, especial Os Homens do Ano.
“Falei para caramba”, observa o escritor e jornalista Edney Silvestre ao final da entrevista. A reportagem de ALFA agradece. Tem material de sobra para traçar o perfil do entrevistado e uma certeza: a narrativa faria bonito em livro. Afinal, o escritor premiado com o Jabuti de Melhor Romance de 2010, por Se eu Fechar os Olhos Agora, repórter da Rede Globo, correspondente internacional da emissora entre 1991 e 2002, apresentador e criador do programa Espaço Aberto Literatura, exibido desde 2003 pela Globo News e morador do bairro carioca do Leblon, depois de anos em Nova York, tem uma trajetória invulgar. “Meu pai era dono de um armazém e minha mãe tinha sido operária em uma fábrica de tecidos. Nós éramos seis filhos. Pobres, mas não destituídos”, diz ele, natural de Valença (RJ). “Tínhamos o essencial, passamos por dificuldades maiores após perdermos tudo num incêndio. Quando nossa casa pegou fogo, eu com uns dois anos e meio de idade, fomos morar “de favor”, em uma casa condenada, que tinha goteiras e onde fazia muito frio. Minha mãe estava grávida. Nessa época tive anemia profunda. Ficava na cama a maior parte do tempo, sem disposição nem saúde para sair e andar.”
A literatura, entretanto, surgiu como alento. Edney não sabe precisar quem lhe deu o primeiro livro, mas lembra que mesmo não sabendo ler, teve as portas do mundo da imaginação escancaradas – possivelmente por uma edição de Os Três Porquinhos. “Meu amor pelos livros vem desse período. Eles me davam a vida que eu não tinha. Tudo o que havia de ensolarado e alegre estava ali, nas páginas, nos textos.”
Curado da anemia, passou a explorar a cidade. Vivia na biblioteca pública, além de frequentar assiduamente os cinemas Glória e Rosário. Nas salas de exibição, aprendeu o inglês que pagaria parte das contas quando foi estudar Ciências Sociais no Rio de Janeiro. Indicado por uma professora, traduziu muito livro de bolso de faroeste. “O inglês exigido para esses livrinhos era simples e direto: ‘Solte a Mary, seu bandido!’, ‘Agora você vai aprender o quanto pesa o braço da lei’, e coisas assim. O que eu aprendera nas sessões dos cinemas em Valença eram mais do que suficientes para isso” diverte-se. Essas traduções, porém, se sofisticariam e ele arrumou emprego na editora Civilização Brasileira. Por conta de uma delas, Fundamentos de Filosofia, de Fiodor Afanasiev, teve problemas com a ditadura militar. Segundo investigações delirantes do DOPS, o jovem tradutor Edney Silvestre era pseudônimo do editor e militante de esquerda Ênio Silveira. Foi preso e interrogado.
A estreia como jornalista deu-se quando Edney foi para a Bloch Editores. Funcionário da Manchete Press, propunha reportagens culturais, que eram aceitas. “Aos 19, 20 anos, recém-chegado do interior, eu achava espetacular aquela circulação de estrelas jornalísticas e literárias pela redação, entre elas Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony “, diz. “Por lá também circulavam vedetes de teatro de revista, Misses Brasil, modelos internacionais célebres e atrizes estupendas como Dina Sfat e Tônia Carrero, duas das mulheres mais bonitas que já vi.”
Tudo ia bem com o jornalismo até um novo problema com o regime. Empregado de O Cruzeiro, viu uma reportagem de sua autoria, sobre a falência de uma fábrica de charutos no recôncavo baiano, previamente censurada. O conteúdo da matéria custou-lhe o emprego e o tornou alvo constante da atenção de militares e censores. “Hoje acredito que nós, os jovens que estavam tentando sacudir a estrutura enferrujada da revista, éramos malvistos e indesejados não apenas pelos espiões da ditadura, mas especialmente pela velha guarda dos Diários Associados”, analisa.
Impedido exercer seu ofício, Edney foi ser redator publicitário e diretor de comerciais. Trabalhou, como ele mesmo diz, nas melhores e nas piores agências do país. Até chegar aos EUA, onde produzia campanhas e videoclipes na KSK Visuals, em Nova York. Para contrapor a fogueira das vaidades da publicidade e do meio musical norte-americanos, escrevia artigos e reportagens para publicações brasileiras. O primeiro frila para O Globo rendeu um convite para colaboração permanente do jornal. “Foi como voltar para casa”, diz ele, que logo depois declinaria de uma oferta milionária para ser diretor de uma produtora de comerciais em Miami. “Era muita grana, mesmo. Não aceitei. Sabia que tinha feito o caminho de volta à minha verdadeira vocação. Fiquei como correspondente de O Globo”.
A migração do impresso para o televisivo aconteceu entre o gradual e o abrupto. Tímido, ele, que criara e apresentara, ao lado do amigo Paulo Francis, o Milênio, na Globo News, relutava em atuar na televisão aberta. Temia pela própria privacidade. Diante de um terceiro convite feito por Evandro Carlos de Andrade, diretor de Jornalismo da emissora, pediu tempo para pensar. O diretor disse que ligaria em cinco minutos. E ligou. Edney aceitou. “Você começa depois de amanhã”, ouviu, trêmulo, do outro lado da linha.
O grande marco de sua carreira como correspondente foi a cobertura dos atentados ao World Trade Center em 2001. Edney e o cinegrafista Orlando Moreira foram os primeiros brasileiros a chegar às torres gêmeas em destroços. “Três mil mortos, em um único ataque, dentro da cidade que era a capital financeira e intelectual do maior império do mundo”, comenta ele, dez anos após o ocorrido. “O horror que presenciei está contado em meu livro Outros Tempos. Ali também conto detalhes do que foram as dificuldades da cobertura jornalística daqueles atentados.”
Sim, os livros, claro, voltam à baila. O debute na ficção, Se eu Fechar os Olhos Agora, inspirado por histórias ouvidas na infância e adolescência, e que levou praticamente duas décadas sendo gestado, venceu em 2010 os Prêmios São Paulo de Literatura, categoria estreante, e Jabuti de Melhor Romance – além de ter programadas traduções em cinco países da Europa. No Jabuti, celeuma: o Prêmio Livro do Ano foi concedido a Leite Derramado, de Chico Buarque, ainda que a obra tenha ficado em segundo lugar na categoria Romance. A lógica da premiação foi questionada na imprensa. Escritores e leitores mais exaltados sugeriram que Chico devolvesse o prêmio e a editora Record, que publica os livros de Edney, anunciou que não mais participará do jogo. “Ter jornais, revistas e sites debatendo literatura em suas primeiras páginas foi sensacional”, afirma. E com Chico, falou depois da polêmica toda?” Não falei com o Chico Buarque nem antes nem depois. Nossos círculos são diferentes, não convivemos, não frequentamos os mesmos lugares”. Então, vê-los juntos no Espaço Aberto Literatura seria ótimo. ”Se ele quiser dar entrevista para o programa, é só ligar: as portas estarão abertas.”, diz Edney, às vésperas da publicação do segundo romance, A Felicidade é Fácil, que se passa durante os anos 1990, em meio ao governo de Fernando Collor de Mello. “Faço um mapeamento da sociedade brasileira daquela época, perversa e corrupta, partindo de um acontecimento real: o sequestro de uma criança, supostamente filha de um milionário, na cidade de São Paulo”, avisa.
Íntegra do texto escrito para edição de setembro último da revista
ALFA, especial Os Homens do Ano.
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