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quando encontrei a doublé da Estrela
enquanto as portas do elevador se abriam
e eu estava saindo
enquanto ela estava entrando
às 4 da manhã
e eu vi que ela estava radicalmente chapada
perguntei pra ela de quê
ela disse 6 Valium e Vinho Branco
porque este era o nosso último dia de filmagem
então ela pensou em celebrar com alguém da equipe
e se divertir
já que esta era sua cidade natal
e ela ia ficar bem aqui
enquanto íamos embora
e a agonia de ser apenas uma doublé local
deixada para trás
numa cidade da qual ela adoraria saltar fora
estava realmente
lhe baixando o astral
e subitamente isso me fez ficar re-envergonhado
de ser um ator num filme
e tudo mais
e provocar tais ilusões estúpidas
então levei-a para o meu quarto
sem desejar seu corpo
nem nada
e ela ficou desesperadamente desapontada
tentou se atirar da minha janela
eu disse olhe, não vale a pena
é só um filme idiota
ela disse não tão idiota quanto a vida

1/11/81
Seattle, Washington


Esse texto é do Sam Shepard e está no incrível Crônicas de Motel, lançado originalmente em 1982. A edição brasileira é de 1984 e eu conservo meu exemplar com devoção. Foi um dos escritos lidos pelo amigo Marcelo Montenegro no espetáculo "Tanqueiras Líricas", apresentado na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, dentro do projeto Outubro Independente, no último sábado. Nossa, que chuva! Além das produções próprias contidas em seu livro Orfanato Portátil (2003) e do próximo que vem por aí, Montenegro lembrou deste que é um de seus poemas prediletos do livro que a gente gosta tanto. Chacal, grande mestre, também estava lá e os dois mandaram juntos, ao som da banda liderada pelo guitarrista Fabio Brum, "Desabutino", poema dos anos 1970. Ei-lo:

Desabutino

quem quer saber de um poeta na idade do rock
um cara que se cobre de pena e letras lentas
que passa sábado a noite embriagado
chorando que nem criança a solidão

quem quer saber de namoro na idade do pó
um romance romântico de cuba
cheio de dúvidas e desvarios
tal a balada de neil sedaka

quem quer saber de mim na cidade do arrepio
um poeta sem eira na beira de um calipso neurótico
um orfeu fudido sem ficha nem ninguém para ligar
num dos 527 orelhões dessa cidade vazia

Chacal, 1975


Já o nome "Tranqueiras Líricas", Montenegro tirou do poema "Buquê de Presságios", do Orfanato Portátil. Foi foda.

Buquê de Presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.

Marcelo Montenegro, 2003

Comentários

Carneiro, meu velho. Puta honra ter você por lá. Grande abraço man.
rodrigo carneiro disse…
adorei, marcelo. abração.

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Escovinha ou função, um breve estudo sociológico

'Back in black' (1986), do Whodini; “I’m a ho!” é a quarta faixa do álbum Dia desses, no Facebook, o amigo Neco Gurgel postou uma música do Whodini, a clássica “I’m a ho!”. Nos bailes black de periferia, o refrão da faixa era conhecido e sobretudo cantado como “Desamarrou (e não amarrou)”. Paródias do tipo eram bastante comuns naqueles tempos, final dos anos 1970, começo dos 1980. Na tradução marota da rapaziada, o funk "Oops upside your head", da Gap Band, por exemplo, ficou informalmente eternizada como "Seu cu só sai de ré". Já “DJ innovator”, de Chubb Rock, era “Lagartixa na parede”- inclusive gravada, quase que simultaneamente, por NDee Naldinho, em 1988, como “Melô da lagartixa”. A música do Whodini, lançada em 1986, remete a um fenômeno que tomou as ruas do centro de São Paulo, e periferias vizinhas, antes da cultura hip hop se estabelecer de fato: o escovinha, também chamado de função. Em “Senhor tempo bom”, de 1996, os mestres Thaíde & DJ Hu