Pular para o conteúdo principal

Serge Gainsbourg, 80 anos


E já que o homem, morto em 1991, faria aniversário nesta quarta-feira, resgato uma matéria batucada por mim e publicada no Caderno 2, d'O Estado de S.Paulo, no dia 4 de março de 2001. No final dela farei um convite aos amigos. Vamos lá.


Obra de Serge Gainsbourg é reunida em 18 CDs


Rodrigo Carneiro


Caso tenha ido para o céu, Serge Gainsbourg deve ter acendido um de seus inúmeros cigarros e acompanhado aos risos a comoção que sua morte causou na sociedade francesa há dez anos - divertiria-se ainda com o atual culto à sua incômoda obra. E, em especial, com o lançamento da luxuosa caixa Gainsbourg... Forever (Universal). São 18 CDs que alternam discos de carreira, material inédito e raridades em geral. Naquele dois de março de 1991, os prédios oficiais hastearam bandeiras a meio mastro, as ruas que davam acesso à sua casa foram temporariamente fechadas pela polícia. O então ministro da Cultura, Jack Lang, saudou seu "senso de humor digno de Rimbaud". Jacques Chirac, à época prefeito de Paris, confidenciou sua incondicional paixão por Harley Davidson. E nem mesmo o presidente François Mitterand se furtou dos comentários e comparou Gainsbourg a Baudelaire e Apollinaire, dizendo que o compositor havia elevado a música pop francesa à condição de arte. Consternados, os cidadãos comuns choraram pelas ruas e fizeram vigília no cemitério de Montparnasse.


No entanto, Gainsbourg estava longe de ser uma unanimidade de crítica, artista amado ou um homem com trânsito livre no alto escalão político. Na verdade, era uma pedra no sapato de moralistas e liberados. Um provocador contumaz que durante três décadas de carreira se ateve às perversões humanas mais obscuras. Só para se ter idéia, uma das mais ilustrativas polêmicas em que ele esteve envolvido, como personagem principal é claro, foi a versão dub-reggae para o hino a Marselhesa. A gravação foi feita em 1979, em Kingstown, na Jamaica, e contou com a participação de respeitados músicos locais como Sly Dunbar e Robbie Shakespeare. Gainsbourg descobrira os ritmos da ilha e estava completamente imerso no intrincado universo rastafari. A faixa, presente no disco Aux Armes Et Caetera, foi considerada uma afronta histórica tachada pela imprensa conservadora francesa de repugnante. Alguns militares mais exaltados consideraram seriamente a possibilidade de assassinato. Para eles, o hino nacional francês passava ao largo da ganja e das tranças dreadlocks. "A música jamaicana é revolucionária, assim como a Marselhesa, então a combinação foi perfeita", justificava.


Filho de uma família judia russa e nascido em Paris, em 1928, Gainsburg foi batizado como Lucien Ginzburg. Mais tarde, quando começou a compor as primeiras canções, se autodenominou Serge (por achar que este soava mais russo do que Lucien) Gainsbourg (em homenagem ao artista plástico inglês Gainsborough). As artes plásticas foram sua primeira paixão, ainda que em paralelo ele aprendesse a tocar piano clássico, por conta da influência do pai, o pianista Joseph Ginzburg. A pretensão de ser um grande pintor perdeu a força de súbito. "Nunca serei um Francis Bacon", reconheceu. Caiu na música.


No final dos anos 50, Gainsbourg podia ser visto tocando em bares e cafés parisienses. Em 1958, grava o primerio disco, Du Chant À L´Une!. O som remetia à tradição da chançon francesa mas estabelecia um inédito diálogo com ritmos negros e a cultura pop norte-americana. Suas composições e álbuns seguintes alcançaram um mercado restrito, porém seleto, que incluía, entre outros, egressos da intelectualidade existencialista - a musa Juliette Gréco gravou um disco apenas com canções dele.


Outros artistas da época passaram a requisitar a produção de Gainsbourg. A maioria deles, ou melhor delas, como as cantoras Nana Mouskouri e Petula Clark, conquistava a parada de sucessos francesa, posto que o compositor ambicionava para si mesmo. Como na música dos Byrds So You Want To Be a Rock´N´Roll Star, Gainsburg queria o estrelato. Um estrelato bizarro. Por conta disso, o compositor trabalhou em trilhas de seriados de TV e filmes, uma delas cantada por Mariane Faithfull.


E por falar em belas mulheres interpretando canções de Gainsbourg, elas são uma constante na, digamos assim, discografia do compositor. Em meados de 1966, o destino colocou em seu caminho aquela que era considerada "a mais bela fêmea a pisar na Terra", a atriz Brigitte Bardot. Um contato, em princípio, profissional que debandou para as ligações perigosas - ambos eram comprometidos. A obsessão do compositor pela imagem sensual de Bardot propiciou uma série de canções temáticas cantadas em dueto com a deusa loura. Initials B.B, Harley Davidson, aquela adorada por Chirac, Bonnie and Clyde, Bubble Gum, são algumas delas.

Contudo, a bem-sucedida relação não resistiu à mais sexualmente explícita canção de todos os tempos. Bardot pediu a Gainsbourg que criasse "a mais bela música de amor". Eles gravaram a lasciva Je T´Aime Moi Non Plus, em dois takes, no inverno de 1967. O marido de Bardot, um playboy chamado Gunther Sacks, pressionou e a atriz preferiu não correr o risco de ter seus gemidos registrados em discos de vinil. Terminava ali um grande parceria.


Je T´Aime Moi Non Plus foi gravada dois anos depois por outra musa, a atriz inglesa, e sua futura esposa, Jane Birkin. Gainsbourg a conheceu no set de filmagem de Slogan (1968). O single foi sucesso imediato, chegando à casa de seis milhões de cópias vendidas pelo mundo todo. A onda de protestos foi proporcional e encontrou eco no Vaticano e nas ditaduras que, em uníssono, proibiram a execução da música na América Latina. Finalmente, aos 41 anos, Gainsbourg alcançara o sonho do hit pop planetário.


Gainsbourg não se limitou às provocações musicais. Escreveu livros e enveredou pela seara da direção cinematográfica. Em 1975, ele reinterpretou seu hit erótico e levou às telas o filme Je T´Aime Moi Non Plus (chamado no Brasil de Paixão Selvagem). O enredo trata do relacionamento trágico entre um caminhoneiro gay, vivido por Joe D´Alessandro, e uma andrógina garçonete de beira-de-estrada chamada Johnny Jane, papel de Jane Birkin. A versão instrumental de Je T´Aime... tocada para embalar a dança de rosto colado do improvável casal é de extrema beleza.


Em 1986, uma nova bomba. O filme Charlotte For Ever, que traz Gainsbourg encarnando um pai que nutre desejos incestuosos pela filha adolescente. O detalhe é que a Charlotte em questão é vivida pela filha que o compositor teve com Jane Birkin. Realismo fantástico à la Gainsbourg?


Dois anos antes do lançamento do filme, Gainsbourg gravou seus dois últimos discos de estúdio, Love On The Beat (1984) e You´re Under Arrest (1985). A audição deles revela que a combinação sadomasoquismo-funk-rap era o que dava o tom na época da produção dos registros. Que ataque do coração que nada. O enfant terrible Gainsburg deve estar fumando e rindo até agora.


Eis o convite: participo hoje de uma homenagem ao homem. A partir das 22h30, estarei no Le Petit Trou (Rua Vupabussú, 71, Pinheiros, reservas: (11) 3097-8589), ao lado de Andrea Merklel, Barbará Eugênia, Chris Hidalgo, Henrique Alves, Alex Antunes, Edgard Scandurra e Arnaldo Antunes, no show Serge Gainsbourg, 80 anos. O Le Petit Trou é o restaurante do Scandurra, especializado na gastronomia francesa da Normandia e da Bretanha. Acho que vai ser bacana.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Escovinha ou função, um breve estudo sociológico

'Back in black' (1986), do Whodini; “I’m a ho!” é a quarta faixa do álbum Dia desses, no Facebook, o amigo Neco Gurgel postou uma música do Whodini, a clássica “I’m a ho!”. Nos bailes black de periferia, o refrão da faixa era conhecido e sobretudo cantado como “Desamarrou (e não amarrou)”. Paródias do tipo eram bastante comuns naqueles tempos, final dos anos 1970, começo dos 1980. Na tradução marota da rapaziada, o funk "Oops upside your head", da Gap Band, por exemplo, ficou informalmente eternizada como "Seu cu só sai de ré". Já “DJ innovator”, de Chubb Rock, era “Lagartixa na parede”- inclusive gravada, quase que simultaneamente, por NDee Naldinho, em 1988, como “Melô da lagartixa”. A música do Whodini, lançada em 1986, remete a um fenômeno que tomou as ruas do centro de São Paulo, e periferias vizinhas, antes da cultura hip hop se estabelecer de fato: o escovinha, também chamado de função. Em “Senhor tempo bom”, de 1996, os mestres Thaíde & DJ Hu