'Back in black' (1986), do Whodini; “I’m a ho!” é a quarta faixa do álbum
Dia desses, no Facebook, o amigo Neco Gurgel postou uma música do Whodini, a clássica “I’m a ho!”. Nos bailes black de periferia, o refrão da faixa era conhecido e sobretudo cantado como “Desamarrou (e não amarrou)”. Paródias do tipo eram bastante comuns naqueles tempos, final dos anos 1970, começo dos 1980. Na tradução marota da rapaziada, o funk "Oops upside your head", da Gap Band, por exemplo, ficou informalmente eternizada como "Seu cu só sai de ré". Já “DJ innovator”, de Chubb Rock, era “Lagartixa na parede”- inclusive gravada, quase que simultaneamente, por NDee Naldinho, em 1988, como “Melô da lagartixa”.
A música do Whodini, lançada em 1986, remete a um fenômeno que tomou as ruas do centro de São Paulo, e periferias vizinhas, antes da cultura hip hop se estabelecer de fato: o escovinha, também chamado de função. Em “Senhor tempo bom”, de 1996, os mestres Thaíde & DJ Hum perguntavam: “lembra do função?/ que com gilete no bolso/ tirava o couro do banco do busão,/ uma tremenda curtição/ e fazia na calça a famosa pizza/ No centro da cidade, as Grandes Galerias/...”
Os versos de Thaíde atestam que os adeptos do escovinha/função eram os pré-MCs, b-boys e grafiteiros brasileiros. Sim, funk, soul, samba rock e partido alto continuavam sendo os ritmos de preferência, mas, passados os anos iniciais do Black Power setentista, a nova geração adotara como visual o cabelo curto – à escovinha -, invariavelmente com risca lateral feita com navalha; roupas esportivas (agasalhos Adidas e Puma, camisas de manga longa da equipe de vôlei da Pirelli); pares de tênis Adidas Marathon, Asics Tiger ou Rainha Mont Car com dois cadarços entrelaçados. As calças jeans, ou de veludo, eram ajustadas na parte superior e com as pizzas de couro a alargar as bocas. Bombetas, os bonés de hoje em dia, iam bem no alto da cabeça, calculadamente displicentes. Casacos de cobertor protegiam do inverno. Havia ainda o uso opcional de bolsas de ombro da grife Cairê. Enfim, uma identidade visual distinta, como observou Rubens Akira, testemunha de muitos deles no clube Sandália de Prata, em Pinheiros. Junto à indumentária peculiar, gírias malandras e muito gingado no andar. Um modo, como cantariam os Racionais MC’s anos mais tarde, “Vida loka” de ser. Meus primos e amigos de bairro eram exatamente assim.
Na época, eu estava bastante envolvido em uma certa militância punk. Depois de duas décadas de ditadura militar, as primeiras eleições para presidente da República iriam ocorrer em breve, no ano de 1989. Contudo, julgávamos todos os candidatos uns parasitas, uns imprestáveis lacaios do capitalismo, inclusive, os mais à esquerda. Sob esse prisma “radical”, uma série de manifestações de cunho anarquista, em prol do voto nulo e pelo antimilitarismo foi protagonizada por nós naquela virada de 1987 para 1988 – ano de eleição municipal. Com a, por assim dizer, repercussão positiva das manifestações – uma ou outra matéria de jornal, longe das habituais reportagens cujo foco era a violência entre gangues, e uma edição especial do extinto programa TV Mix, da TV Gazeta -, acreditou-se que tumultuar o desfile paulistano de Sete de Setembro seria uma ótima ideia.
Chegaríamos lá aos milhares, tomaríamos o palco das autoridades, e, ao microfone, daríamos o recado punk à população brasileira. Coisa simples. Para o início da ação, o ponto de encontro, secreto, foi na Praça da Sé. Mas a informação vazou. Um grupo de militantes havia sido preso já na estação Armênia do metrô, nos informava um dos companheiros que conseguira furar o cerco policial. Mesmo desfalcado, o contingente punk fez uma rápida assembléia e decidiu-se, por unanimidade, que iríamos ao desfile mesmo assim.
Partimos em marcha. Ao meu lado, um outro punk negro. Já tínhamos nos visto em outras ocasiões e, ali, conversávamos, animadíssimos, enquanto caminhávamos, gritando toda a sorte de palavras de ordem. No entanto, a passeata durou até o Vale do Anhangabaú, onde a tropa de choque estava a postos para reprimir a manifestação. Houve rápida troca de “gentilezas” e os policiais partiram para o ataque. Um confronto desigual, evidentemente. Uma cena não muito agradável de se ver. Nisso, meu companheiro de protesto, de súbito, baixou a barra da calça e tirou a camiseta preta de banda hardcore que exibia. Embaixo dela, havia a icônica camisa da equipe de vôlei da Pirelli. Rapidinho, ele ainda tirou uma bombeta da mochila e meteu no alto da cabeça. Virou um insuspeito escovinha/função em segundos. Gênio, gênio. Eu, que estava de calça apertada rasgada no joelho, cinto de rebite e jaqueta de couro, não tive como me transformar em outra coisa. Todo paramentado, no visual, como a gente dizia, levei umas borrachadas antes de dispersar. Século passado. Final dos anos 1980, garotada.
Dia desses, no Facebook, o amigo Neco Gurgel postou uma música do Whodini, a clássica “I’m a ho!”. Nos bailes black de periferia, o refrão da faixa era conhecido e sobretudo cantado como “Desamarrou (e não amarrou)”. Paródias do tipo eram bastante comuns naqueles tempos, final dos anos 1970, começo dos 1980. Na tradução marota da rapaziada, o funk "Oops upside your head", da Gap Band, por exemplo, ficou informalmente eternizada como "Seu cu só sai de ré". Já “DJ innovator”, de Chubb Rock, era “Lagartixa na parede”- inclusive gravada, quase que simultaneamente, por NDee Naldinho, em 1988, como “Melô da lagartixa”.
A música do Whodini, lançada em 1986, remete a um fenômeno que tomou as ruas do centro de São Paulo, e periferias vizinhas, antes da cultura hip hop se estabelecer de fato: o escovinha, também chamado de função. Em “Senhor tempo bom”, de 1996, os mestres Thaíde & DJ Hum perguntavam: “lembra do função?/ que com gilete no bolso/ tirava o couro do banco do busão,/ uma tremenda curtição/ e fazia na calça a famosa pizza/ No centro da cidade, as Grandes Galerias/...”
Os versos de Thaíde atestam que os adeptos do escovinha/função eram os pré-MCs, b-boys e grafiteiros brasileiros. Sim, funk, soul, samba rock e partido alto continuavam sendo os ritmos de preferência, mas, passados os anos iniciais do Black Power setentista, a nova geração adotara como visual o cabelo curto – à escovinha -, invariavelmente com risca lateral feita com navalha; roupas esportivas (agasalhos Adidas e Puma, camisas de manga longa da equipe de vôlei da Pirelli); pares de tênis Adidas Marathon, Asics Tiger ou Rainha Mont Car com dois cadarços entrelaçados. As calças jeans, ou de veludo, eram ajustadas na parte superior e com as pizzas de couro a alargar as bocas. Bombetas, os bonés de hoje em dia, iam bem no alto da cabeça, calculadamente displicentes. Casacos de cobertor protegiam do inverno. Havia ainda o uso opcional de bolsas de ombro da grife Cairê. Enfim, uma identidade visual distinta, como observou Rubens Akira, testemunha de muitos deles no clube Sandália de Prata, em Pinheiros. Junto à indumentária peculiar, gírias malandras e muito gingado no andar. Um modo, como cantariam os Racionais MC’s anos mais tarde, “Vida loka” de ser. Meus primos e amigos de bairro eram exatamente assim.
Na época, eu estava bastante envolvido em uma certa militância punk. Depois de duas décadas de ditadura militar, as primeiras eleições para presidente da República iriam ocorrer em breve, no ano de 1989. Contudo, julgávamos todos os candidatos uns parasitas, uns imprestáveis lacaios do capitalismo, inclusive, os mais à esquerda. Sob esse prisma “radical”, uma série de manifestações de cunho anarquista, em prol do voto nulo e pelo antimilitarismo foi protagonizada por nós naquela virada de 1987 para 1988 – ano de eleição municipal. Com a, por assim dizer, repercussão positiva das manifestações – uma ou outra matéria de jornal, longe das habituais reportagens cujo foco era a violência entre gangues, e uma edição especial do extinto programa TV Mix, da TV Gazeta -, acreditou-se que tumultuar o desfile paulistano de Sete de Setembro seria uma ótima ideia.
Chegaríamos lá aos milhares, tomaríamos o palco das autoridades, e, ao microfone, daríamos o recado punk à população brasileira. Coisa simples. Para o início da ação, o ponto de encontro, secreto, foi na Praça da Sé. Mas a informação vazou. Um grupo de militantes havia sido preso já na estação Armênia do metrô, nos informava um dos companheiros que conseguira furar o cerco policial. Mesmo desfalcado, o contingente punk fez uma rápida assembléia e decidiu-se, por unanimidade, que iríamos ao desfile mesmo assim.
Partimos em marcha. Ao meu lado, um outro punk negro. Já tínhamos nos visto em outras ocasiões e, ali, conversávamos, animadíssimos, enquanto caminhávamos, gritando toda a sorte de palavras de ordem. No entanto, a passeata durou até o Vale do Anhangabaú, onde a tropa de choque estava a postos para reprimir a manifestação. Houve rápida troca de “gentilezas” e os policiais partiram para o ataque. Um confronto desigual, evidentemente. Uma cena não muito agradável de se ver. Nisso, meu companheiro de protesto, de súbito, baixou a barra da calça e tirou a camiseta preta de banda hardcore que exibia. Embaixo dela, havia a icônica camisa da equipe de vôlei da Pirelli. Rapidinho, ele ainda tirou uma bombeta da mochila e meteu no alto da cabeça. Virou um insuspeito escovinha/função em segundos. Gênio, gênio. Eu, que estava de calça apertada rasgada no joelho, cinto de rebite e jaqueta de couro, não tive como me transformar em outra coisa. Todo paramentado, no visual, como a gente dizia, levei umas borrachadas antes de dispersar. Século passado. Final dos anos 1980, garotada.
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