Escrevi o release de um dos melhores discos do ano. Ei-lo.
Acompanhar, relativamente de perto, o aperfeiçoamento de um artista é uma dádiva. Digo, artista à vera. Daqueles que tangenciam o perigo, caminham beirando o abismo, estão à frente, como batedores, iluminando, às vezes, turvando, o caminho. O cantor e compositor Jair Naves faz parte desta categoria. Sua figura grave surgiu, ao menos pra mim, em 2000, numa das últimas formações do finado Okotô, meus parceiros de geração. Em paralelo à atividade de baixista caçula na banda, Naves dava os primeiros passos do que seria o Ludovic. Deu no que deu. Uma respeitabilidade conquistada rapidamente no grito, em shows arrasadores – em algum deles, detalhe, temi pela integridade física daquele garoto. Logo, as narrativas desconcertantes, tramadas por Naves e defendidas com veemência, seriam registradas em dois discos cultuados: “Servil” (2004) e “Idioma Morto” (2006). Até que, depois de oito intensos anos no front de batalha, o final chegou ao Ludovic (2000 – 2009).
Isso posto, com seu nome de batismo e foto estampados na capa de um belo EP, “Araguari” (2010), Naves anunciou um novo ciclo criativo que culmina agora em “E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas”, disco solo de estreia, que ganha as ruas via Travolta Discos e Popfuzz Records. Gravado, mixado e masterizado por Fernando Sanches, no Estúdio El Rocha, em julho de 2012, o álbum tem a produção assinada por Naves, que divide-se entre a feitura das letras, a emissão da voz e os acordes de guitarra e violão de cordas de aço. No estúdio da zona oeste paulistana, o autor foi ladeado por Alexandre Molinari e Adriano Parussulo, baixistas; Alexandre Xavier, piano; Cimara Fróis, sanfona; Renato Ribeiro, guitarra, violão de cordas de nylon e vibrafone; e Thiago Babalu, bateria. O pianista Xavier, o baixista Molinari, o baterista Babalu, trio presente às gravações, e o guitarrista Renato Ribeiro o acompanham shows noite adentro.
“E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas” começa com “Pronto para morrer (o poder de uma mentira dita mil vezes)”, de versos como “Minha baixa escolaridade/ é um espetáculo à parte/ eu sei que pode te entreter/ já que você vê comicidade/ em tanta desigualdade/ o que, pra mim, é novidade/ mas eu evito esse debate/ pois seguiremos nesse impasse/ mesmo depois que eu morrer/...”. Da urgência tensa e pós-punk da faixa de abertura, Naves vai à balada cadenciada "Poucas palavras bastam”, aliás, notícia velha, trata-se de um sujeito que, além do desenho harmônico das canções, tem especial apreço pelo discurso. Um estilista da palavra. A sonoridade tristonha da sanfona nos momentos iniciais é um dos destaques de “No fim da ladeira, entre vielas tortuosas”, onde, segundo o personagem, “acontece que eu ainda enxergo em ti/ tudo de que eu mais me orgulho em mim/ Como um pássaro ruidoso ao ver a luz do amanhecer/ eu não pude me conter/...”
Em andamento mais, digamos, festivo, “Maria Lúcia, Santa Cecília e eu” reverencia – e preocupa-se com - a mãe, Maria Lúcia, e a padroeira dos músicos, segundo a mitologia cristã, Cecília, a santa, num dos outros momentos de rara inspiração do registro. De acento sessentista, “Carmem, todos falam por você” também convida sutilmente a dançar e explode em um (não)refrão gritado. “Guilhotinesco” fala de Deus, solidão e ilusões perdidas. Isso, ao modo guilhotinesco e fatal. Que faixa, que faixa. “Vida com V maiúsculo, vida com v minúsculo” é outro achado. “Quando eu era menor,/ eu me perguntava como deveria ser/ a vida em uma dessas casas à beira da estrada/ tristes e isoladas/ Acho que agora eu sei/ pelo vazio com que eu convivo há tanto tempo”.
“Covil de cobras” produz watts de potência ao tratar da inexorabilidade do tempo. Dedilhada ao violão e amparada pela banda no final, “A meu ver” é de uma delicadeza irresistível. Tal qual “Eu sonho acordado”, que dá cabo do álbum em alto estilo (“Me assegura que você jamais vai maldizer/ o instante em que você se deu pra mim,/ em que se anulou por mim/... / eu sonho acordado/ com a vingança dos torturados,/ com a mulher que vai envelhecer ao meu lado,/ com o meu pai ressuscitado/...”). Que o amor, esse tsunami, esse cão danado dos infernos, seja louvado. E o artista à vera, que nos inquieta e deleita com “E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas”, também.
Acompanhar, relativamente de perto, o aperfeiçoamento de um artista é uma dádiva. Digo, artista à vera. Daqueles que tangenciam o perigo, caminham beirando o abismo, estão à frente, como batedores, iluminando, às vezes, turvando, o caminho. O cantor e compositor Jair Naves faz parte desta categoria. Sua figura grave surgiu, ao menos pra mim, em 2000, numa das últimas formações do finado Okotô, meus parceiros de geração. Em paralelo à atividade de baixista caçula na banda, Naves dava os primeiros passos do que seria o Ludovic. Deu no que deu. Uma respeitabilidade conquistada rapidamente no grito, em shows arrasadores – em algum deles, detalhe, temi pela integridade física daquele garoto. Logo, as narrativas desconcertantes, tramadas por Naves e defendidas com veemência, seriam registradas em dois discos cultuados: “Servil” (2004) e “Idioma Morto” (2006). Até que, depois de oito intensos anos no front de batalha, o final chegou ao Ludovic (2000 – 2009).
Isso posto, com seu nome de batismo e foto estampados na capa de um belo EP, “Araguari” (2010), Naves anunciou um novo ciclo criativo que culmina agora em “E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas”, disco solo de estreia, que ganha as ruas via Travolta Discos e Popfuzz Records. Gravado, mixado e masterizado por Fernando Sanches, no Estúdio El Rocha, em julho de 2012, o álbum tem a produção assinada por Naves, que divide-se entre a feitura das letras, a emissão da voz e os acordes de guitarra e violão de cordas de aço. No estúdio da zona oeste paulistana, o autor foi ladeado por Alexandre Molinari e Adriano Parussulo, baixistas; Alexandre Xavier, piano; Cimara Fróis, sanfona; Renato Ribeiro, guitarra, violão de cordas de nylon e vibrafone; e Thiago Babalu, bateria. O pianista Xavier, o baixista Molinari, o baterista Babalu, trio presente às gravações, e o guitarrista Renato Ribeiro o acompanham shows noite adentro.
“E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas” começa com “Pronto para morrer (o poder de uma mentira dita mil vezes)”, de versos como “Minha baixa escolaridade/ é um espetáculo à parte/ eu sei que pode te entreter/ já que você vê comicidade/ em tanta desigualdade/ o que, pra mim, é novidade/ mas eu evito esse debate/ pois seguiremos nesse impasse/ mesmo depois que eu morrer/...”. Da urgência tensa e pós-punk da faixa de abertura, Naves vai à balada cadenciada "Poucas palavras bastam”, aliás, notícia velha, trata-se de um sujeito que, além do desenho harmônico das canções, tem especial apreço pelo discurso. Um estilista da palavra. A sonoridade tristonha da sanfona nos momentos iniciais é um dos destaques de “No fim da ladeira, entre vielas tortuosas”, onde, segundo o personagem, “acontece que eu ainda enxergo em ti/ tudo de que eu mais me orgulho em mim/ Como um pássaro ruidoso ao ver a luz do amanhecer/ eu não pude me conter/...”
Em andamento mais, digamos, festivo, “Maria Lúcia, Santa Cecília e eu” reverencia – e preocupa-se com - a mãe, Maria Lúcia, e a padroeira dos músicos, segundo a mitologia cristã, Cecília, a santa, num dos outros momentos de rara inspiração do registro. De acento sessentista, “Carmem, todos falam por você” também convida sutilmente a dançar e explode em um (não)refrão gritado. “Guilhotinesco” fala de Deus, solidão e ilusões perdidas. Isso, ao modo guilhotinesco e fatal. Que faixa, que faixa. “Vida com V maiúsculo, vida com v minúsculo” é outro achado. “Quando eu era menor,/ eu me perguntava como deveria ser/ a vida em uma dessas casas à beira da estrada/ tristes e isoladas/ Acho que agora eu sei/ pelo vazio com que eu convivo há tanto tempo”.
“Covil de cobras” produz watts de potência ao tratar da inexorabilidade do tempo. Dedilhada ao violão e amparada pela banda no final, “A meu ver” é de uma delicadeza irresistível. Tal qual “Eu sonho acordado”, que dá cabo do álbum em alto estilo (“Me assegura que você jamais vai maldizer/ o instante em que você se deu pra mim,/ em que se anulou por mim/... / eu sonho acordado/ com a vingança dos torturados,/ com a mulher que vai envelhecer ao meu lado,/ com o meu pai ressuscitado/...”). Que o amor, esse tsunami, esse cão danado dos infernos, seja louvado. E o artista à vera, que nos inquieta e deleita com “E você se sente numa cela escura, planejando a sua fuga, cavando o chão com as próprias unhas”, também.
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