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Um conto natalino

Minha mãe se atrapalhou com as datas. Isso é inédito. Estava certa de que a véspera do suposto nascimento de Jesus Cristo era amanhã. Não que as coisas para a ceia estivessem por completo despreparadas. O peru congelado já havia descido do freezer para a geladeira, os demais componentes da babel gastronômica estavam à mão, assim como os presentes que rondam a árvore de Natal. Mas minha mãe trabalhava com a informação de que tinha um dia a mais para a produção do evento em família. No almoço, após retornarem do supermercado e do shopping center, o assunto veio à baila, e ela surpreendeu-se com a notícia dada placidamente por meu pai: “O dia 24 é hoje, meu bem. As lojas estavam cheias”. Eu, o desatento-mor, que nesse período do ano me vejo sempre entre um conto natalino do século 19 de Charles Dickens e o “Papai Noel Velho Batuta”, dos Garotos Podres, engrossei o coro. Incrédula, ela ainda foi à folhinha pregada na parede da cozinha. A confirmação estava lá: sexta-feira, 24 de dezembro.

Ligou para a minha irmã, que por sua vez achou que mamãe não faria nada de especial hoje. Elas tinham conversado ontem e um almoço de sábado ou domingo, não sei ao certo, havia sido programado. Ela, meu cunhado e sobrinho já estavam pensando no que fazer na noite de Natal. Riram bastante durante a ligação telefônica, e a vinda de minha irmã para ajudar nos preparativos virou tarefa em minutos. Já chegou, inclusive, com meu sobrinho, moleque gente-finíssima, nos braços.

Sem fazer drama - e nem me consumir em culpa, algo que me foi apresentado na infância pelas Irmãs Beneditinas da Divina Providência -, acho que esse episódio das datas tem bastante a ver comigo. Afinal, 2010 foi, ou melhor, está sendo, um ano tempestuoso. E já que os ingredientes de caos, inadequação, questionamentos brabos, fome de viver e outros bichos ariscos estejam sempre na minha receita, talvez essa tenha sido a minha contribuição torta à ceia. Mas, está tudo certo, como dois e dois são cinco. O amor está conosco. Meu pai deseja boas festas a parentes e amigos ao telefone, com aquela voz que eu tento, sem sucesso, imitar; minha mãe e irmã dão os últimos retoques no que será o jantar da natividade, eu falei, já estava tudo quase pronto; e meu sobrinho acaba de vir até mim, exibir um dos carrinhos de corrida que ele tanto gosta, sorrir lindamente e partir em disparada. Com um olhar úmido e o lábio inferior insistindo em tremer, penso nessas imagens de conforto e em todas as mudanças dos últimos meses, e me deixo chorar em um misto de alegria e tristeza. Ah, a vida.

Amor, saúde e felicidade a todos.

Comentários

Anônimo disse…
Tudo de bom pra vc tbém, brimo!
rodrigo carneiro disse…
ô, brimo! valeuzão. que venha o 2011. abraço forte.

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