Na maluquice da vida, fiquei uma década sem falar com o meu amigo Luís Nascimento. Eu, ele e o Hungarês tínhamos um zine de quadrinhos no fim dos anos 1980. Chamava “Barato”. Com algumas edições, conseguimos o que eram, pra nós, grandiosas conquistas: ter o endereço para correspondência divulgado pelo suplemento MAU, da mítica revista “Animal”, acrescido de um comentário incentivador, e a presença do ilustrador e quadrinista João Gualberto Costa, o Gual, numa impremeditável mesa de debate conosco, no extinto Culturarte, em Osasco. Ao lado do também ilustrador José Alberto Lovetro, o Jal, o artista apresentava um quadro dedicado às HQs no programa TV Mix, da TV Gazeta. Numa noite, na maior cara de pau, fomos pessoalmente levar uns exemplares para eles. Até hoje não sei como saímos do prédio da emissora, na avenida Paulista, com a garantia da participação de alguém tão influente no que seria o agito de lançamento do próximo número, com a exposição de originais, da publicação xerocada de três pirralhos.
Findado o zine, nos metemos em outras aventuras, sempre pautadas por música, política, filosofia, cinema etc, porém, em dado momento, a assiduidade dos encontros diminuiu, mas não o apreço mútuo. De longe, ele acompanhava os meus lances e eu os dele. Lançou livro, “Shaftesbury e a ideia de formação de um caráter moderno” (Alameda Casa Editorial), resultante de sua tese de doutorado, foi pesquisador na Europa, colaborador de renomadas publicações filosóficas e atuava como professor do departamento de Filosofia da UFSCar, a Universidade Federal de São Carlos, nos programas de pós-graduação, estudos de literatura e graduação.
Uma amiga em comum, a professora Luciana Corrêa de Araújo, que também leciona na instituição, foi a figura que restabeleceu o nosso contato. Já que Nascimento nunca tivera perfil em rede social, a estudiosa me enviou a seguinte mensagem, em 2019. “Acabei de encontrar Luís aqui na Federal, onde nós dois ensinamos, e ele me pediu seu telefone. Disse que faz uns dez anos que não fala contigo. Como ele não tem Facebook, me fala teu número que eu repasso”. Numa das angustiantes tardes de isolamento de 2020, o celular tocou. Atendi: era o doutor. A conversa fluiu numa dinâmica cúmplice que só velhas e velhos camaradas têm. Falamos de Brasil adoecido, da passagem do tempo, do filho pequeno dele, de Stan Lee, de insanidade, de pessoas queridas e personagens nefastos. Consegui até sanar uma das dúvidas que o atormentava. Por anos buscava, sem sucesso, uma de suas canções prediletas, apresentada por mim, gravada em fita cassete, nos idos de 1988. Ao término do nosso longo e prazeroso bate-papo, com os contatos devidamente registrados no WhatsApp, mandei para ele o link de “Poor cow”, uma inusitada balada punk do Sham 69. Bingo: era a música que o brilhante filósofo queria reencontrar. Ficou feliz à beça.
Desde então, trocamos mensagens e áudios curtos de muito inconformismo e alguma alegria. A foto que ilustra a postagem foi um desses respiros. Nela, estamos eu, Marcelo Galiarde (de cinza azulado) e ele (de vermelho), em 1991. O registro juvenil é do meu saudoso primo-irmão Reinaldo Vaz – uma das inúmeras vítimas da necropolítica tupiniquim. De posse do retrato digitalizado, Nascimento lembrou que sua camisa de flanela fora um presente da avó anos antes da eclosão grunge. “Vovó prevê tendência noventista”, comentei no ato. Profusão de emojis risonhos como resposta. Por essas e diversas outras é que a notícia do infarto fulminante que o abateu, aos 48 anos, no último domingo, 19, me entristeceu tanto.
Via Facebook, o amigo Gunter Sarfert lembrou de sequência maravilhosa de um dos meus filmes brasileiros preferidos, Os Sete Gatinhos (1980), de Neville d'Almeida, baseado na obra de Nelson Rodrigues.
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