Batuquei “Uma relação nada delicada”, reportagem principal desta temporada da revista Bravo! Que honraria. Ao longo do texto, há depoimentos valiosos de Alexandra Loras, Anelis Assumpção, Roberta Estrela D'Alva, Marcio Black e Viny Rodrigues. Sugiro a leitura. Foto: Ayrson Heraclito
"Uma relação nada delicada"
(Rodrigo Carneiro)
A relação entre indústria cultural e negritude nunca foi harmoniosa. E, no que se diz respeito à música, o racismo é o ponto nevrálgico de uma dinâmica crudelíssima. Funciona da seguinte maneira: a um só tempo, o mercado detecta uma tendência genuína, um robusto depoimento afrodescendente. Reconhece todo valor estético dessa tendência e, simplesmente, promove adulterações para a venda. Apropriando-se dela. Numa nítida reprodução da pretensa hierarquia racial e cultural da sociedade, onde qualquer indivíduo, projeto ou produto que se aproxime do padrão eurocêntrico é melhor avaliado. Essa é a ótica. Uma visão não consciente. E nas regras do jogo industrial sempre valeu tudo. De invisibilidade dos criadores a restrições nos campos de atuação profissional e da mobilidade econômica, passando pela difusão de esteriótipos e violência. Pensemos no blues, por exemplo. No fim século 19, o gênero inaugurou a modernidade da música popular norte-americana ao congregar cantos laboriais, hinos religiosos e afirmação afro- americana diante de uma sociedade ainda escravista. Uma manifestação revolucionária de beleza, um elogio aos elementos relacionados à origem étnica dos pretos, que seria fundamental para o surgimento de outra das potências criativas do século 20: o jazz.
Sabedores do que acontecia no interior dos Juke Joints – pequenos bares geridos por negros no sudoeste dos Estados Unidos –, os burocratas do entretenimento toparam com um manancial. Após o período inicial, em que o ragtime e o dixieland de New Orleans davam o tom, o jazz só se tornou uma música de grande êxito comercial com o advento do swing, nos anos 1930. O que caracteriza o estilo são as grandes orquestras. Detalhe: orquestras majoritariamente brancas.
Considerado o rei do swing, o clarinetista Benny Goodman foi o primeiro a ter negros e brancos entre seus músicos – o que causava espécie. Já a cantora Billie Holiday, com um vasto leque de tragédias pessoais, pagou outra vez pelo pioneirismo. Em 1938, contratada como crooner da famosa orquestra de Artie Shaw, a artista era obrigada a utilizar a porta dos fundos das casas de espetáculo, enquanto os colegas de pele clara iam e vinham pela entrada principal. Vítima de racismo e machismo, a única mulher da banda também não desfrutava dos mesmos suntuosos hotéis que o restante dos músicos. A ela, as espeluncas como pousada. Episódios como o da intérprete de Strange Fruit, um libelo antirracista escrito por Abel Meeropol, são inúmeros, dolorosos. Não deixa de ser sintomático que só em 1991 um afro-americano, o trompetista Wynton Marsalis, tenha conquistado a direção artística do Lincoln Center, em Nova York, importante instituição ligada à alta cultura dos Estados Unidos.
Quase todos pretos
“Em um sentido popular, é inegável que quase tudo que circula dentro da indústria fonográfica e do entretenimento é de origem direta ou indireta afrodescendente. O embranquecimento da música é necessário para que ela se torne mundialmente vendável, tendo em vista que o racismo estrutural cria mecanismos de apropriação e ressignificação das manifestações culturais, deixando os artistas negros marginalizados no processo”, explica o sociólogo, ativista e educador Viny Rodrigues. O rock’n’roll, outra das influentes expressões afrodescendentes, viveu um fenômeno idêntico.
Progressão do blues, ele já existia no final dos anos 1940, começo dos anos 1950. E acontecia exclusivamente no circuito destinado ao entretenimento preto, o chamado chitlin' circuit. Afinal, a segregação racial estava em pleno curso – sendo combatida desde sempre por quem a experimentava na carne e encontrando seu apogeu de luta em meados da década de 1960, com a intensificação do movimento pelos Direitos Civis. Portanto, ainda que Elvis Presley seja tido como rei roqueiro e figuras como Jerry Lee Lewis, Carl Perkins ou Buddy Holly estejam em destaque quando se pensa no gênero, os verdadeiros artífices são outros. Aliás, no disco de estreia de Elvis, de 1956, há canções de Little Richard e Ray Charles.
“Muita gente se choca quando descobre o verso “Elvis was a hero to most but he never meant shit to me” (Elvis foi o herói de muita gente, mas nunca significou merda nenhuma para mim) do Public Enemy, em Fight the Power, mas com toda polêmica se Elvis era racista ou não (muitos afirmam que não), eles estão falando de algo maior”, diz Roberta Estrela D’Alva, atriz-MC, apresentadora e slammer. “O que é o Chuck Berry? O que é o Little Richard? Aquela performance. Ele já tinha uma atitude queer muito antes de queer, LGBT existir. Aquilo era muito avançado conceitualmente, como linguagem”.
E o esforço do branqueamento, ela assinala, não é coisa apenas norte-americana. “Teve aquele episódio do Carnaval da Bahia, quando o maestro Letieres Leite falou que se Margareth Menezes fosse branca, não existiria Daniela Mercury”, diz. Em 2016, o regente da Orkestra Rumpilezz afirmou que “Margareth levantou a bola, quando foi cabecear, empurraram-na, e botaram Daniela no lugar pra cabecear”.
“Gente, a Margareth Menezes é monumental, uma artista enorme e ela foi e é invisibilizada pelo mainstream se comparada a cantoras como a Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Daniela. Mas é claro que uma marca de cerveja, ou seja lá o que for que patrocine, um trio, um show, o Carnaval, prefere investir na imagem de uma cantora branca”, lamenta Estrela D’Alva.
Isso dá samba
Reconhecido pela Unesco como patrimônio imaterial da humanidade em 2005, o samba nasceu no Recôncavo Baiano. Aportou na região da Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro, e, devido à especulação imobiliária, ascendeu aos morros cariocas. Tinha toda uma trajetória periférica, mas só foi levado a sério nos grandes salões com a chancela do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos. No ano de 1940, em parceria com o regente britânico, naturalizado norte-americano, Leopold Stokowski, Villa-Lobos promoveu um registro fonográfico a bordo do navio S.S. Uruguai, com as participações de Donga, Pixinguinha, Cartola, João da Baiana e Zé Espinguela. Até então, o samba era visto com reservas e alvo constante de preconceito. Cartola, inclusive, lavava carros quando foi reencontrado pelo jornalista Sérgio Porto em 1956. Compositor de sucessos gravados por Carmen Miranda, Mário Reis, Francisco Alves e Silvio Caldas durante a década de 1930, um dos autores mais sofisticados do planeta sumira de cena e só foi estrear como intérprete de suas obras em 1974.
Há outros tipos de exclusão. A cantora e compositora Anelis Assumpção, filha de Itamar, fala do desconforto do pai no cenário da vanguarda paulistana – composta por pensadores, linguistas, intelectuais, gente que estava produzindo musicalmente a partir da USP e de estímulos acadêmicos. “Na música, o que se espera de nós é o balanço, o molejo, a sensualidade. Hoje eu entendo o conflito dele em estar num ambiente intelectualizado, não se sentir parte, mas sem ter muito como fazer de outro jeito”.
Segundo Anelis, Itamar foi emoldurado no papel de marginal, de maldito, de uma forma bastante cruel de interpretação. “Numa análise mais crítica, dá até para enxergar um certo racismo nesse romance que foi desenvolvido em torno da figura dele. Claro, houve outros artistas igualmente taxados de malditos. O desafio de quem desenvolve qualquer linguagem de expressão artística, diferente do que se espera, é a busca pela liberdade. Eu mesma vivo essa experiência: hoje me sinto mais à vontade com o meu jeito de cantar e compor, sem a preocupação do que as pessoas esperam de mim como uma cantora negra. Exercício constante de rompimento de padrões.”
Colors
Tomada de consciência, ativismo virtual, extrema complexidade de tema e demandas históricas têm produzido, além de avanços, efeitos adversos. O colorismo, por exemplo, voltou à baila num controvertido episódio. Cunhado pela escritora e ativista norte-americana Alice Walker, em 1982, o termo, chamado também de pigmentocracia, alude ao quão mais pigmentada for a pele de uma pessoa, mais discriminação ela sofrerá.
Foi exatamente onde um setor da militância negra se apoiou para repelir a indicação da cantora Fabiana Cozza para o papel de protagonista do espetáculo teatral Dona Ivone Lara – Um sorriso Negro – O Musical. Segundo a intensa grita nas redes sociais, Fabiana, parda na certidão de nascimento, herdeira de mãe branca e pai negro, não estaria apta – leia-se, branca demais – à interpretação da fabulosa sambista.
Com inúmeros serviços prestados ao samba, histórico de relação e anuência da família da homenageada para viver o papel, a cantora retirou-se do projeto. E enumerou, em carta e áudio, as razões: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro.”
“Espero que o acontecido com Fabiana Cozza, nos lembre que o colorismo é uma forma de organização social dentro de uma estrutura maior dominada pela branquitude, que é o racismo, e que as críticas sejam sempre direcionadas para o alvo certo”, diz Viny Rodrigues. “Independente de ser a favor ou contra à renúncia dela ao papel de Dona Ivone Lara, não devemos considerá-la inimiga, mas sim discutir o assunto de forma séria, e nos livrando dessa tendência contemporânea de criação de enunciados políticos dispersos ou de ‘ctrl+c | ctrl+v’ (copia e cola), que só reforçam os mecanismos de separação criados pelos brancos na escravidão”, observa.
Roberta Estrela D’Alva enxerga nos novos tempos a desnaturalização do racismo e a amplitude da voz daqueles que foram historicamente marginalizados. “Seja por motivo de tomada consciência, de mercado ou de culpa institucional, as mulheres, pessoas negras, sexualmente não-binarias, gordas, todas que não teriam espaço até então, estão sendo contratadas pra shows, filmes, campanhas publicitárias etc”, diz ela. “Mas tem um próximo passo que vai questionar quem são os donos das gravadoras, das plataformas digitais, quem dirige e escreve os roteiros dos clipes, dos filmes, das séries. Ou seja, aquela velha questão do velho barbudo Marx: quem ainda são os donos dos meios de produção? A gente vai ter que discutir raça e capitalismo junto, porque tudo o que está dentro desse sistema está regulado por ele.”
O cientista político, ativista e produtor cultural Marcio Black concorda. “Atualmente o principal embate diz respeito à representatividade negra em outros pontos fundamentais da cadeia produtiva da música. Precisamos de mais produtores, mais empresários, negros capitalizados capazes de investir. É muito comum nos Estados Unidos, e temos dois grandes exemplos aqui no Brasil que são a Boogie Naipe, administradora das carreiras de Mano Brown solo e dos Racionais MCs, e o Lab Fantasma, empresa criada pelo rapper Emicida. E fica óbvia na atuação dessas duas produtoras a importância de termos negras e negros liderando os processos”, afirma.
Afrofuturo
A questão da representatividade preta nos mais diversos espaços também determina as ações da ex- consulesa da França em São Paulo, empresária e escritora Alexandra Loras. Coautora em parceria com o historiador Carlos Eduardo Dias Machado de Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente, ela desenvolveu um aplicativo chamado Protagonizo, um LinkedIn para negros acadêmicos, mestres e doutores bilíngues. “Temos mais de cinco mil pessoas e cerca de 450 contratações neste ano’’, diz ela. “Gosto de desconstruir os estereótipos que nos colocam sempre no contexto da música, do esporte e ou da hipersexualização. Não há nada de errado com a inteligência física, mas o negro é algo muito mais além. Não podemos estar restringidos”, afirma.
Seja no Brasil seja no exterior, o combate ao racismo tem apresentado um salutar arsenal de novos de olhares, de notáveis abordagens criativas. A seara audiovisual é prova disso. Exemplos são séries de TV, como Cara Gente Branca, de Justin Simien, que enfoca com brilhantismo a tensão racial entre negros e brancos de uma universidade de elite americana, e Atlanta, de Donald Glover, em que dois primos, um MC e seu empresário, buscam a todo custo um lugar ao sol no cenário hip hop da Georgia. Glover, aliás, também responde pelo elogiado Childish Gambino. Com três álbuns lançados, o alter ego musical do ator e diretor cometeu um dos clipes mais acessados e debatidos dos últimos meses, This is America. No cinema, Pantera Negra (2018), de Ryan Coogler, surge com o um marco para o protagonismo negro. Ao apresentar uma gama de heróis e líderes pretos, vividos por um elenco virtuoso e lindíssimo, a produção trouxe às massas a estética com a qual dialoga: o afrofuturismo.
Pluridisciplinar, o termo abarca ancestralidade africana, ficção científica, realismo mágico, tecnologia e o porvir. Prenunciado entre as décadas de 1950 e 1970, por escritores, como Ralph Ellison, e músicos intergaláticos, caso de Sun Ra e Parliament/Funkadelic, o afrofuturismo nasce de um estudo do crítico Mark Dery no ensaio Black to the Future, presente no livro Flame Wars: O Discurso da Cibercultura (1994). Em verdade, um questionamento da ausência de autores afrodescendentes na ficção científica dos Estados Unidos.
E por falar em estudos acadêmicos, é alvissareira a inclusão do álbum Sobrevivendo no Inferno (1997), dos Racionais MCs, entre as obras de leitura obrigatória para o vestibular 2020 da Universidade Estadual de Campinas. A produção está na categoria “Poesia”, ao lado de “A Teus Pés”, de Ana Cristina Cesar, e dos sonetos de Luís de Camões. A instituição indica a apreciação integral sugerindo links para o álbum no YouTube e no Spotify.
“Emancipate yourselves from mental slavery/ None but ourselves can free our minds” (Libertem-se da escravidão mental/ Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes), canta Bob Marley, em Redemption Song. A lembrança dos versos é súbita e imperativa. Em meio à luta – de todos -, o escriba recorre a ela para finalizar este texto.
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